domingo, 3 de abril de 2011

46 assassinatos em mossoró em 2011

GENTE HUMILDE

Antes das oito da manhã,três disparos. Duvidei se eram tiros pelo silêncio de em seguida. Mas com pouco ouço exclamações e correria na rua. O movimento convergia para o lugar onde soaram os disparos (um som estranho que logo evoca o sombrio vulto da morte), um bar a cem passos da minha janela, de onde pude ver que as pessoas se aproximavam de um ponto no chão, que eu não conseguia ver, observavam e se afastavam. A minha primeira conjectura foi de uma desavença entre freqüentadores.

Pessoas começam a acorrer, a pé, de moto, chega o SAMU, que por coincidência fica a poucos metros, mas não sai, e o burburinho vai aumentando. Vou ver. Ao chegar no local ainda não há muita gente. Vejo na calçada, deitado de costas, um homem, com a face exposta e com a cabeça rodeada de uma poça de sangue. Um ponto escurecido na face direita parecia um buraco de bala. Aquele homem, de talvez uns trinta e poucos anos, desconhecido para mim, ali deitado, com o rosto e a cabeça ensangüentados, não parecia ainda morto, parecia talvez num estágio entre o sono e a morte. Parecia um homem dormindo um sono estranho e perplexo, do qual, quem o vê, porém, sabe que não mais retornará.

Afasto-me. Aquilo parece irreal, talvez por eu não conhecer o homem, mas acho que mais por parecer tão espantosa e impossível uma morte daquele jeito, que mais parecia um alarme, uma misteriosa advertência de algo trágico e irremediável, sob o sol claro da manhã. Ouvi comentários de que foram dois caras numa moto. Ouvi também que perto dali, no mesmo bairro, houvera outro assassinato pouco antes, em plena manhã do sábado. Enquanto o burburinho aumentava vi crianças rindo a correr. Ainda pude ver, antes de me retirar, aqueles gritos indescritíveis de uma mulher também parecendo próxima dos trinta, que chegou de carona numa moto e se aproximou do que fora seu homem, ou seu irmão. Abismada no horror do seu desespero, nos seus gritos do mais enlouquecido clamor, não teve o amparo de ninguém. O clima era frieza e indiferença.

Já me afastando, pergunto a um senhor quem era o morto. Ele apenas disse o nome, que eu já ouvira entre os presentes: Miguel. Nada mais. Recolho-me à minha residência e acompanho da janela a chegada dos jornalistas, da polícia e de cada vez mais populares das proximidades, e logo toda a rua é tomada por pessoas, carros e motos. Depois de algum tempo chega o carro do ITEP. Demora um pouco e se vai. E segue Miguel, homem que eu nunca vi, na segunda etapa da sua jornada de retorno ao pó. Já não é mais um homem dormindo na calçada, no seu insondável espanto.

As pessoas se dispersam, restando algumas por mais um tempo. Ouço novamente, da minha residência, gritos desesperados de mulher. Ficam alguns homens ao redor dos carretéis de fiação que servem de mesas. Sugerem, à distância, no fulgor da claridade, um dia comum daquele lugar onde homens parecem apenas espantar o tempo, entre doses de cana. E o sol do meio-dia se abate sobre o calçamento da rua vazia. Ao sair, não vejo mais ninguém, nem mais o sangue na calçada.

Sinto-me incomodado pelo acontecido. Pela violência, certamente. Mas também por ter flagrado, no seu mais total desamparo, um desconhecido. É como uma violação. Por isso pergunto: quem era esse homem, que conheci de modo tão íntimo e devassador, poucos minutos depois dele estar mudo e não poder me falar, estar surdo e não poder me ouvir, estar cego e não poder me ver. Para eu poder lhe perguntar quem era e o que ele sonhou neste mundo. Para eu lhe pedir permissão, ou perdão, de vê-lo nesse estado tão triste e lamentável. Para eu poder verter em pranto um pouco da tristeza e pena que me desperta tão grande desamparo.

Ao cair da tarde, caminhando pelas ruas próximas, vejo vir um cortejo, algumas motos na frente, dois homens com a tampa de um caixão estendido no sentido transversal à rua, e as pessoas a pé, conduzindo um homem morto, no caixão aberto. Aproximei-me, perguntei quem era: Miguel, disse um rapaz. Fiquei na calçada vendo se aproximar o caixão aberto. Um rapaz perguntou: o senhor quer ver? Não, eu já o vi – respondi. Na verdade tive vontade de me aproximar e ver, como ficara o rosto daquele homem, violado, que eu não conheci em vida, mas cuja morte já me parecia próxima e dolorosa, mas dessa vez o pudor me impediu.

Aguardei a sua passagem e me persignei enquanto vislumbrava seu rosto no caixão, aberto para que as pessoas possam ver, para que aquela dor possa clamar. Mas os muitos carros passavam velozes e indiferentes, roçando a gente. Não têm no peito o sentimento de absurdo e perda, e as perguntas que agora me assolam. 

O cortejo se vai, a pé. Gente humilde, gente pobre. Desamparada, desvalida, enterrando mais um dos seus filhos vitimados por uma violência insana que tomou conta da sua vida, destruindo suas alegrias e esperanças, seu presente, seu futuro, sua liberdade.


Giovanni Rodrigues – Professor da UERN

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