E digo bem: foi a cidade do Rio de Janeiro e não apenas seu governo, a polícia ou as Forças Armadas. A Cesar o que é de Cesar: a articulação entre governo, polícias e Forças Armadas foi importante e deixa-nos a lição de que sem articulação entre os muitos setores envolvidos na luta contra o crime organizado e sem disposição de combatê-lo a batalha será perdida.
Mas sem o apoio da sofrida população do Rio, dos cariocas e brasileiros que habitam a cidade, e muito particularmente sem o apoio da população que vive nas comunidades atingidas pelos males da droga e pela violência do tráfico, o êxito inicial não teria sido possível.
Estive no morro do Santa Marta há pouco tempo, quando a Unidade de Polícia Pacificadora já estava estabelecida e pude ver que efetivamente o medo e o constrangimento da população local haviam desaparecido. A droga ainda corre por lá, mas entre usuários e não nas mãos de traficantes locais.
Sei que em São Paulo e em outras regiões do país também há tentativas bem sucedidas de devolver ao Estado sua função primordial: o controle do território e o monopólio do exercício da violência (sempre que nos marcos legais). Mas o caso do Rio é simbólico porque a simbiose entre favela e bairro, entre a cidade e a zona pretensamente excluída está entranhada em toda parte.
Há, portanto, o que comemorar. Faz pouco tempo eram quase cem mil moradores de comunidades cariocas que se haviam libertado, graças à presença da Polícia Pacificadora, da sujeição ao terror do tráfico e das regras de “justiça pelas próprias mãos” ordenadas pelo chefões locais e cumpridas por seus esbirros.
Com a entrada do Estado no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, há a possibilidade de incorporar mais gente às áreas restituídas à cidadania. Mas as populações serão mesmo restituídas à vida normal em uma democracia? E neste passo começam as perguntas e preocupações.
Sem que se restabeleçam as normas da lei, sem que a permanência da força policial, sem que a Justiça comum volte a imperar, sem que a escola deixe de ser um local onde se trafica, sem que os mercados locais sejam interconectados com os mercados formais da cidade e sem que a educação e o emprego devolvam esperança aos “aviões” (os jovens coagidos a serem sentinelas dos bandidos e portadores de droga para os usuários), a vitória inicial será de Pirro.
Neste caso, a não guerra em algumas comunidades pela fuga dos traficantes com parte de suas armas pode desdobrar-se adiante em um inferno a que serão submetidas populações de outras comunidades, seja por traficantes ou membros das milícias.
Não escrevo isso para diminuir a importância do que já se conseguiu. Pelo contrário, mas para chamar à responsabilidade todos nós, como cidadãos, como pais, avós, como partes da sociedade brasileira pelo que acontece no Rio e em quase todo o país.
Fiquei muito impressionado com o que aprendi e vi ao integrar um grupo que está preparando um documentário sobre drogas. Estive em Vigário Geral em um encontro que José Junior do AfroReggae proporcionou para que eu pudesse entrevistar traficantes arrependidos e policiais envolvidos nas guerras locais. Entrevistei muitas mães de famílias, mulheres em presídios, jovens vitimados pelo tráfico (e quem sabe se não partes dele também).
Eu havia estado na Palestina ocupada por forças de Israel e vi o constrangimento a que as populações locais são submetidas. Pois bem, no Rio de Janeiro, o constrangimento imposto pelo crime organizado e às vezes exacerbado pela violência policial, que por vezes se confundem, é pelo menos igual, senão maior, ao que vi na Palestina.
A falta de liberdade de ir e vir que os bandidos de diferentes facções impõem a seus “súditos” forçados e o medo da “justiça direta” tornam as populações locais prisioneiras do terror do tráfico. E não adianta dar de ombros em outras partes do Brasil e pensar que “isso é lá no Rio”. Não, a presença do contrabando, do tráfico e da violência do crime organizado está em toda parte. E a ausência do Estado também, para não falar que sua presença é muitas vezes ameaçadora pela corrupção da polícia e suas práticas de violência indiscriminada.
Se agora no Rio de Janeiro as ações combinadas das autoridades políticas e militares abriram espaço para um avanço importante, é preciso consolidá-lo. Isso não será feito apenas com a presença militar, a da Justiça e a do Estado. Este está começando a fazer o que lhe corresponde. Cabe à sociedade complementar o trabalho libertador.
Enquanto houver incremento do consumo de drogas, enquanto os usuários forem tratados como criminosos e não como dependentes químicos ou propensos a isso, enquanto não forem atendidos pelos sistemas de saúde publica e, principalmente, enquanto a sociedade glamourizar a droga e anuir com seu uso secreto indiscriminadamente, ao invés de regulá-lo, será impossível eliminar o tráfico e sua coorte de violência.
A diferença entre o custo da droga e o preço de venda induzirá os bandos de traficantes a tecer sempre novas teias de terror, violência e lucro.
Sem que o Estado, inclusive — se não que principalmente — no nível federal, continue a agir, a controlar melhor as fronteiras, a exigir que os países vizinhos fornecedores de drogas coíbam o contrabando, não haverá êxito estável no controle das organizações criminosas.
Por outro lado, sem que a sociedade entenda que é preciso romper o tabu e veja que o inimigo pode morar em casa e não apenas nas favelas e se disponha a discutir as questões fundamentais da descriminalização e da regulação do uso das drogas, o Estado enxugará gelo.
Ainda assim, só por liberar territórios nos quais habitam centenas de milhares de pessoas, o Rio de Janeiro enviou a todos os brasileiros um forte sinal de esperança.
Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República